domingo, 29 de maio de 2011

Coluna do Residente número 4 Ano 1

A destruição dos últimos estoques dos vírus da Varíola é oportuna agora?

Durante muitos séculos a varíola foi uma das doenças mais temidas e mortais da humanidade. Sua erradicação foi uma das maiores conquistas de saúde pública em termos mundiais, resultante de uma ação coordenada e sinérgica de todas as nações sob o comando da OMS.
O último caso foi notificado em 1977 e a doença foi declarada extinta em 1980.
Desde então a OMS  recomendou que os últimos estoques de vírus da varíola (smallpox)  fossem concentrados em dois laboratórios de referência:  o CDC (Center for Disease Control) e o Centro Estatal de Pesquisas em Virologia e Biotecnologia da Rússia.
Em 2011 a Assembléia da OMS incluiu em sua agenda a discussão sobre fixar ou não uma data para a destruição desses últimos estoques conhecidos do vírus da varíola.
Muitos especialistas consideram inapropriada essa destruição inflexível desses vírus agora. Várias são as considerações levantadas em função dessa posição:

1-    Apesar da declaração de erradicação da doença, nenhuma inspeção internacional garantiu a transferência de todos os estoques para os laboratórios de referência;
2-    A partir de 1990 houve uma grande e crescente preocupação  com o potencial retorno do smallpox face as ameaças de grupos terroristas de utilizarem agentes infecciosos (guerra biológica/terrorismo biológico) com finalidades políticas consideradas nefastas;
3-    Os organismos de saúde mundiais instituíram agendas e pesquisas ambiciosas para o desenvolvimento de novas gerações de vacinas contra a varíola para aumentar a segurança mundial nesse aspecto. Nesse contexto a existência de vírus vivos é essencial para esse tipo de pesquisa;
4-    Paralelamente a OMS instituiu estratégias globais para a manutenção de estoques substanciais de vacinas contra a varíola, além de uma rede de laboratórios capacitados para o seu diagnóstico, além do controle dos estoques  de vacinas e vírus para a pesquisa .
Novas vacinas foram obtidas e outras ainda estão em vias de finalização do seu processo de pesquisa e fabricação.  Antivirais efetivos também têm sido testados, além do seqüenciamento genômico do vírus e modelos animais da doença.
Para  esses cientistas truncar esses esforços agora seria altamente contraproducente, considerando ainda que metade da população mundial nasceu depois que a imunização foi interrompida na década de 80. Na África essa proporção é muito maior. São pessoas que não estão imunes ao vírus.
Além disso  depois de 1980 variantes da varíola foram identificadas (smallpox-like disease) causada pelo  monkeypox na África, transmitidas por roedores que causaram pequenos surtos da doença em humanos no Congo e no Sudão entre 2003 e 2006. Em alguns desses surtos verificou-se, inclusive, transmissão entre humanos.  Trinta anos depois da interrupção da vacinação (que, por sinal, dava proteção cruzada ao monkeypox vírus!)  isso passou a ser um problema de saúde pública na África central com um crescimento de 20 vezes nos relatos desses surtos desde a década de 80.
Uma liberação, intencional ou acidental, do vírus da varíola causaria um pandemia da doença com contornos particularmente graves na África,  cujos países estão desprovidos de vacinas e antivirais até mesmo para o monkeypox e outras poxiviroses emergentes.
Yet experimental evidence shows that the advances that result from smallpox research, such as safer vaccines and safe and effective oral antiviral agents, will be useful for prevention and control of monkeypox. But this work must be completed to gain these benefits.3, 7, 8
Nesse panorama fica claro que os esforços para conter a varíola  são inquestionáveis mas não estão completos e a destruição desses vírus ainda não deve ser considerada por mais parodoxal que essa posição possa parecer à primeira vista em termos de saúde pública mundial.
Citação

The Lancet, Early Online Publication, 20 May 2011
doi:10.1016/S0140-6736(11)60694-6Cite
The remaining smallpox stocks: the healthiest outcome
Jean-Vivien Mombouli a, Stephen M Ostroff
a National Public Health Laboratory, Brazzaville, Republic of Congo
b Bureau of Epidemiology, Pennsylvania Department of Health Harrisburg, PA 17120, USA