sexta-feira, 6 de maio de 2011

Coluna do Residente - Edição 1 , Ano 1 .


COLUNA DO RESIDENTE
A Coluna do Residente é uma proposição para colaborar nessa fase de formação da vida profissional. Geralmente o médico residente tem um dia de 34 horas a cumprir e uma tonelada de informações da especialidade para digerir. Mesmo num grande hospital escola em que a multidisciplinaridade é parte da vivência, alguns assuntos significativos, de outras especialidades e gerais, podem passar ao largo. Outro fato que pode ocorrer, como parte da natureza humana,  é a necessidade de conhecimentos periféricos do nosso foco principal, até como uma derivação e abstração.  Como iniciativa do Editor do site, vamos nos propor a apresentar semanalmente algum assunto  ou fato que possa contribuir nesses aspectos apontados.
Esperamos que seja de bom proveito.

Dr. Homero Guidi, Editor do Site

O primeiro comentário da Coluna do Residente refere-se a um editorial publicado no New England Journal of Medicine na edição do dia  5 de maio de 2011  sobre uma tendência que vem se apresentando no mundo da pesquisa médica  relativa aos estudos denominados pragmáticos  (ou práticos) que procuram trazer uma pitada de realidade na aplicação dos conhecimentos científicos na prática médica real, levando em conta o viés da realidade encontrada no dia a dia, um tanto diferente dos ambientes altamente controlados dos estudos clássicos.
O editorial está traduzido do original,  que teve como autor principal um professor de estatística da Universidade de Harvard, que também é consultor nessa área no New England, uma publicação médica que dispensa apresentações e tem um fator de impacto abaixo apenas da Nature e Science  (*)

J.H. Ware and M.B. Hamel | N Engl J Med 2011;364:1685-1687


Apesar de ensaios clínicos randomizados apresentarem  evidencias essenciais e de alta qualidade sobre os benefícios e malefícios de intervenções médicas, muitos desses ensaios, têm  relevância limitada para a prática clínica. As investigações são muitas vezes estruturadas de maneira que não atendem às necessidades de pacientes e médicos  em questões reais sobre um determinado tratamento. Por exemplo, ensaios controlados, com grupo  placebo, para uma nova  medicação para enxaqueca podem ajudar a estabelecer sua eficácia, mas eles não podem ajudar os médicos e pacientes a escolher entre a nova medicação e outros tratamentos já disponíveis. Além disso, uma vez que a maioria dos ensaios clínicos randomizados são estudos de eficácia, os investigadores  incluem  uma população homogênea de pacientes, definem esquemas de tratamento cuidadosos  e exigem que os pacientes sejam seguidos  assiduamente, e não informam  nem os pacientes nem o pessoal envolvido no estudo sobre os tratamentos atribuídos a cada um (duplo-cego).  Assim, embora estes ensaios sejam realizados em clínicas, os pacientes e populações matriculados e as abordagens clínicas não refletem a complexidade e diversidade  encontradas na prática clínica real. Devido às preocupações sobre a aplicabilidade no mundo real e sobre a melhoria da qualidade e do valor dos cuidados de saúde,  os ensaios "pragmáticos" ou "práticos"  estão atraindo cada vez mais atenção.1

Ensaios pragmáticos são desenhados e realizados para responder à questões importantes para os pacientes, médicos e administradores de saúde (policymakers).2 Eles comparam duas ou mais intervenções médicas que são diretamente relevantes para o cuidado clínico ou para as ações de  saúde e se esforçam para avaliar a eficácia dessas intervenções  na prática médica no mundo real . Eles usam critérios de elegibilidade gerais e recrutamento de pacientes de uma grande variedade e  tipos de pacientes (nas suas características gerais)  para garantir a inclusão dos vários tipos de pacientes cujo tratamento vai  realmente ser influenciado pelos resultados do estudo. A conduta médica em estudos  pragmáticos é consistente com as práticas clínicas habituais  o que freqüentemente  significa  omitir procedimentos de estudo, tais como  o duplo-cego, que altera a "ecologia" do cuidado médico. Idealmente, esses estudos  mensuram  todos os resultados que são importantes para os pacientes e os tomadores de decisão, incluindo a sobrevida, status funcional, qualidade de vida e custos. E a duração do tratamento e acompanhamento devem  ser suficientes para avaliar adequadamente os benefícios e riscos dos tratamentos.



 
Na edição do New England Journal of Medicine de 5 de maiode 2011, Price et al. (páginas 1695-1707) relatam os resultados de dois ensaios clínicos que foram projetados para resolver questões importantes sobre o manejo da asma. No primeiro estudo  investigou-se  se os antagonistas de leucotrienos são equivalentes aos glicocorticóides inalatórios no  tratamento de primeira linha. Na segundo estudo  eles examinaram se os antagonistas de leucotrienos são equivalentes aos  beta-agonistas de longa ação, como terapêutica adjuvante para glicocorticóides inalatórios em pacientes cuja asma é mal controlada. Os ensaios foram patrocinados pelo Ministério da Saúde da Grã-Bretanha (Programa de Avaliação de Tecnologias)  com o propósito explícito de fornecer diretrizes para o manejo da asma no Serviço de Saúde Britânico.

Os ensaios tiveram critérios de elegibilidade gerais e foram conduzidos em 53 unidades de  atenção primária. O resultado primário do estudo  foi  baseado na  auto-avaliação dos pacientes,  validadas pelo questionário da Mini-AQLQ ( Mini Asthma Quality of Life Questionnaire ), e os estudos  procuraram demonstrar a equivalência das estratégias de tratamento. Uma vez que os pesquisadores  visavam preservar a ecologia do  atendimento clínico, os pacientes e os médicos tinham conhecimento da atribuição dos dois  tratamentos. Em ambos os estudos, o critério de equivalência foi alcançado em dois meses, mas  em dois anos, para o resultado primário.


O cruzamento  substancial  que resulta em grande similaridade entre os  regimes de tratamento que, em última instância, foram seguidos nos dois grupos de estudo  tenderá em produzir resultados semelhantes nos dois  grupos. Assim, um estudo de equivalência pragmático  com uma elevada taxa de abandono não pode demonstrar a equivalência de forma robusta.

No estudo de avaliação de terapia de primeira linha contra a asma, as taxas de adesão, medidas pelas  prescrições emitidas, foram baixas - 65% no grupo do agonista dos leucotrienos e apenas 41% no grupo do  glicocorticóide inalatório. Assim, as duas estratégias de tratamento podem  não refletir o efeito máximo dos dois tratamentos. No outro estudo (add-on therapy trial)  as taxas de adesão foram apenas um pouco melhores, 74% e 46%, respectivamente.
As altas taxas de perda de follow-up podem  ter um efeito devastador sobre uma experimentação pragmática. Price  e seus colaboradores conseguiram excelentes níveis de retenção de pacientes. Nos dois estudos, 92% e 97% dos pacientes, respectivamente, foram incluídos na intenção de  análise  e,   pelo menos 95% dos pacientes tiveram uma avaliação final no final no estudo.

Estudos  pragmáticos freqüentemente requerem grandes amostras para detectar pequenos efeitos do tratamento  em uma população heterogênea.
Além disso, um estudo maior é necessário para detectar diferenças entre dois tratamentos ativos, do que entre o tratamento ativo e placebo. Price et al. registraram um total de 658 pacientes nos dois estudos  e os conceberam  para ter capacidade  suficiente para descartar uma diferença mínima importante na escala de qualidade de vida na asma.


A disponibilidade de um instrumento de pesquisa  validado que seja sensível às mudanças dos sintomas asmáticos contribuíram para a sua capacidade de resolver a questão da investigação sem um número ainda maior de pacientes.

O  tratamento “não cego”  e a avaliação clínica pode ser um aspecto importante dos esforços para preservar a ecologia do cuidado médico. Nestes estudos,  comparando o tratamento oral e inalatório da asma, o desconhecimento (blinging) da terapia poderia  ter  um efeito significativo sobre a experiência dos pacientes. Além disso, as  auto-avaliações pelos pacientes, como o Mini-AQLQ,  podem ser as medidas mais relevantes da eficácia de um  tratamento em estudos  pragmáticos. No entanto, a combinação do tratamento do “paciente cego” e auto-avaliação enfraquece um elemento importante dos estudos de  eficácia, criando um potencial para a polarização: expectativas dos pacientes sobre a eficácia de cada tratamento podem influenciar o seu relato de qualidade de vida. Há poucas estratégias, se é que há alguma disponível, para avaliar esse viés num determinado estudo.
Estes ensaios tiveram muitos pontos fortes. Eles tiveram um período de tratamento de 2 anos para avaliar os efeitos de longo prazo do tratamento, e suas taxas de retenção de indivíduos foram impressionantemente altas. No entanto, os investigadores encontraram muitos dos desafios característicos dos estudos pragmáticos. Esses desafios e as limitações resultantes desses estudos devem ser considerados na interpretação dos resultados.

Se os pacientes em uma estudo pragmático  têm permissão para alterar ou interromper o tratamento imediatamente, a não aderência pode ser um problema importante. Na medida em que as mudanças no tratamento de pacientes individuais refletem a prática clínica normal, uma análise da  intenção de tratar  fornecerá  uma comparação válida de estratégias de tratamento. Entretanto, esta última se torna uma questão mais complicada de não inferioridade ou julgamento de equivalência, em que ele pode criar um viés em direção a um achado de equivalência.3  

Estudos  pragmáticos são mais fortes quando eles incluem avaliações  do resultado objetivo (sobrevivência, por exemplo, resultados de exames) e as medidas subjetivas (por exemplo, pesquisas de qualidade de vida); preocupação com viés é reduzida quando os resultados das medidas objetivas e subjetivas são consistentes.

Apesar de suas limitações, os dados encontrados fornecem evidencias encorajadoras da equivalência  (ou muito próximo disso) das estratégias de tratamento estudadas ao longo de dois anos. Embora imperfeitos eles fornecem orientações úteis para a prática clínica.  
O que, então,  podemos concluir a partir desses dois  estudos?
No entanto, os estudos pragmáticos ilustram as suas dificuldades típicas. Ao interpretar os resultados os clínicos podem perguntar tanto se os resultados são válidos, quanto se são aplicáveis, genericamente,  aos seus próprios pacientes e, portanto, possam ser relevantes paras as decisões clínicas com que eles realmente se deparam no dia-a-dia.
Esses estudos são desenhados para estudar a prática clínica no mundo real e, portanto,  são experimentos  não tão perfeitos quanto os exames de eficácia: eles sacrificam a validade interna para atingir a generalização. 

O desafio é manter o equilíbrio adequado, de modo que os resultados sejam  susceptíveis  de ser corretos e também aplicáveis à prática clínica.

É importante reconhecer que quando não existem estudos clínicos relevantes, os médicos e administradores de saúde pública voltam-se para a pesquisa observacional ou opiniões de experts para a elaboração de diretrizes para a assistência.

Assim os estudos pragmáticos têm o potencial de ser uma importante fonte de informações para a orientação clínica e assistencial. Uma análise cuidadosa das suas vantagens e desvantagens, bem como das estratégias possíveis para atenuar as suas limitações,  são muito importantes para melhorar a sua concepção e avaliação com a expansão desses estudos.

Fonte de informação sobre o autor do editorial:
O Dr. Ware é Professor de Bioestatística da Escola de Saúde Pública de Harvard, Boston, e consultor de estatística do New England Journal of Medicine.

Referências

References
  1. 1
Schwartz D, Lellouch J. Explanatory and pragmatic attitudes in therapeutic trials. J Chronic Dis 1967;20:637-648
CrossRef | Medline
  1. 2
Tunis SR, Stryer DB, Clancy CM. Practical clinical trials: increasing the value of clinical research for decision making in clinical and health policy. JAMA 2003;290:1624-1632
CrossRef | Web of Science | Medline
  1. 3
D'Agostino RB Sr, Massaro JM, Sullivan LM. Non-inferiority trials: design concepts and issues -- the encounters of academic consultants in statistics. Stat Med 2003;22:169-186
CrossRef | Web of Science | Medline


Artigos citados

Citing Articles
  1. 1
Dahlén, Sven-Erik, Dahlén, Barbro, Drazen, Jeffrey M., . (2011) Asthma Treatment Guidelines Meet the Real World. New England Journal of Medicine 364:18, 1769-1770
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(*)  Curiosidade adicional 
IF  (Fator de impacto)
Institute for Scientific Information (Thomson Reuters) ISI New Engl J Med   Fator de impacto  (IF)  34,83.
Índice  do Combined IF  para o NEJM  19,84.