Sara Bottino*
Dezembro/2010
O câncer é uma doença que interfere e ameaça a trajetória da vida dos indivíduos com intensas repercussões psicossociais. Os pacientes, após receberem um diagnóstico de câncer, substituem suas perspectivas de realização de projetos pessoais como trabalho, casamento e filhos, por preocupações com a gravidade da doença e com os efeitos do tratamento. Essas preocupações persistem com manifestações freqüentes de ansiedade e medo das possíveis recorrências, tornando esses pacientes ‘guardiães da saúde’. A incerteza prognóstica relacionada ao diagnóstico de câncer pode impedir o restabelecimento da ‘segurança’ dos pacientes que têm que conviver com um estressor grave, por um período prolongado de tempo, aumentando os riscos de reações patológicas graves ao estresse (Kangas et al., 2002).
Diagnóstico de Câncer: Um Evento Traumático?
Apesar do câncer de mama ser uma doença potencialmente curável, a experiência do diagnóstico de câncer de mama tem sido considerada traumática para a maioria das mulheres. Em um estudo multicêntrico, as três experiências consideradas mais estressantes por mulheres com câncer de mama, desde a descoberta do nódulo na mama, realização dos exames (biópsias), até a indicação médica e/ou escolha da paciente da cirurgia conservadora ou mastectomia, em ordem, foram: “quando o médico me falou que eu tinha câncer de mama”, “esperando os resultados da cirurgia e/ou dos nódulos axilares”, e “período de espera, antes da cirurgia de mama” (Green et al., 1998). A amostra era constituída de mulheres com escolaridade e nível sócio-econômico altos, foram diagnosticadas nos estágios iniciais e já tinham terminado tratamentos para o câncer de mama, sugerindo a importância do impacto subjetivo do diagnóstico de câncer de mama, mesmo em mulheres com acesso às informações relativas ao câncer e com recursos sócio-econômicos favoráveis.
O “temor à doença” foi uma das dimensões identificadas em um estudo sobre as crenças associadas à prática do auto-exame da mama em mulheres brasileiras de baixa renda, realizado por Gonçalves & Dias (1999), que considerou a implicação dessa crença no estigma freqüentemente associando o câncer como sinônimo de "morte". O câncer é uma doença grave, freqüentemente associada à morte, e o seu aparecimento é imprevisível. Essas características podem contribuir para as respostas agudas e graves de estresse que ocorrem na época em que as mulheres são diagnosticadas com câncer de mama (McBride et al, 2000).
O diagnóstico de câncer de mama foi considerado uma experiência inesperada e incontrolável por 87% das mulheres entrevistadas (n=127), durante o pós-operatório da mastectomia e/ou quadrante (Mehnert & Koch, 2007). Além do diagnóstico de câncer e suas implicações, como medo da morte e da perda da mama, as mulheres se deparam com vários estressores como os procedimentos diagnósticos (biópsias, mamotomia), tratamentos invasivos (quadrantectomia e mastectomia), efeitos colaterais e aversivos da quimioterapia e radioterapia (fadiga, perda do cabelo, náusea), e repercussões na sexualidade e fertilidade (McBride et al., 2000; Hann et al., 1998, Jacobsen et al., 1993; Kaplan HS, 1994). As manifestações de ansiedade e medo das possíveis recorrências persistem durante e após os tratamentos, com a permanência, em alguns pacientes, de sintomas crônicos de estresse (Cordova et al., 1995). Quando os sintomas de estresse agudo ou crônico não são tratados podem contribuir para o sofrimento emocional e redução da qualidade de vida (Andrykowski et al. 1998; Green e cols, 2000).
O diagnóstico de câncer pode precipitar o aparecimento de uma Reação Aguda ao Stress e posterior desenvolvimento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). O diagnóstico de câncer foi incluído entre os estressores que podem precipitar o Transtorno de Estresse Pós-Traumático no último Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais: DSM-IV (American Psychiatry Association, 1994).
Câncer, Modelo de Rede de Medo e Sintomas de Resposta Traumática
Diante de uma situação vivenciada como ameaçadora ou traumática, ocorre uma ativação da ‘rede de medo’ na memória. A rede é composta da informação sobre o evento traumático, das reações fisiológicas ao trauma e da informação enteroceptiva que conecta esses estímulos aos elementos de resposta. A resolução do ‘trauma’ acontece com sucesso quando a rede de medo é ativada tornando possível o acesso de informações que são incompatíveis com o ‘trauma’.
No entanto, algumas características do evento traumático como a gravidade, a imprevisibilidade e a impossibilidade de controle, podem levar às interrupções no processo cognitivo de atenção e memória, impedindo a integração das informações com as estruturas de memória existentes, resultando na formação de uma memória fragmentada (Foa et al., 1989; Brewin et al., 1996). Dependendo da gravidade do estressor, o processo cognitivo de atenção e memória pode ser interrompido, levando a formação de uma memória fragmentada, dificultando a integração com as estruturas de memória. Os sintomas do Transtorno do Estresse Pós-Traumático: TEPT surgiriam quando as informações na rede de medo são incompatíveis com as estruturas de memória pré-existentes.
As características descritas no modelo de rede para explicar o TEPT também estão presentes e potencialmente descrevem a experiência associada ao câncer, como aparecimento imprevisível, ameaça de morte, tratamentos desfigurantes e aversivos, isolamento social, desamparo, as quais podem promover um campo fértil para o surgimento do Transtorno do Estresse Pós-Traumático. A incerteza prognóstica associada ao diagnóstico de câncer impede que a correção da informação sobre a segurança do sujeito seja integrada na ‘rede de medo’ (Kangas et al., 2002). Quando um evento é inesperado, maior é a chance do desenvolvimento de sintomas de TEPT. Quando a recorrência do câncer era inesperada pelos pacientes, a incidência de sintomas de estresse pós-traumáticos como Evitação e Intrusão era maior do que em pacientes que de acordo com o prognóstico, tinham possibilidade de recorrência (Cella et al, 1986).
A Intrusão e a Evitação são mecanismos cognitivos, que de acordo com a intensidade, podem ser considerados sintomas de estresse pós-traumáticos. Os sintomas intrusivos são pensamentos que invadem a mente, imagens e sonhos, que relembram constantemente aspectos da doença e do tratamento. Os sintomas de evitação são caracterizados pela esquiva persistente de estímulos associados com o trauma, evitar pensamentos, sentimentos ou conversas, atividades, locais ou pessoas que ativem a recordação do trauma. Evitar pensar e conversar com o médico, fazer perguntas sobre os tratamentos, não aceitar ou adiar os tratamentos, são reações observadas em pacientes diagnosticados com câncer. Adicionalmente, a negação, que muitos pacientes apresentam, pode inibir o processamento emocional e cognitivo da ‘ameaça’ do diagnóstico de câncer. A negação e/ou evitação poderia limitar a ativação das memórias aversivas e os afetos associados a elas, impedindo a instalação e a correção da rede de medo, resultando em reações patológicas, relacionadas à tentativa de evitar ou suprimir a ativação da rede de medo (Wool, 1998, citado por Kangas et al., 2002). O diagnóstico de câncer ou a recorrência foi incluído entre as doenças que ameaçam a vida como um evento traumático grave, compatível com os critérios do DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, American Psychiatry Association, 1994), que pode precipitar o Transtorno de Estresse Pós Traumático – TEPT.
Impacto do Diagnóstico de Câncer de Mama e o Transtorno do Estresse Pós Traumático em Mulheres Brasileiras
Conduzimos um estudo para avaliar o TEPT em um centro de referência especializado em oncologia feminina do Sistema Único de Saúde – SUS: o Centro de Referência da Saúde da Mulher- Hospital Pérola Byington, que recebe mulheres provenientes de várias regiões da capital e do interior de São Paulo, e também do território nacional. Nesse trabalho avaliamos 290 mulheres recém diagnosticadas com câncer de mama, antes do início dos tratamentos. Utilizamos a escala “Post-Traumatic Stress Disorder Checklist-Civilian Version” (PCL-C) para avaliar sintomas de TEPT especificamente relacionados ao diagnóstico, como, por exemplo, ter pensamentos e imagens repetitivos e perturbadores relacionados ao diagnóstico de câncer de mama. A PCL-C consiste de 17 itens que correspondem aos sintomas do DSM-IV para o diagnóstico de TEPT.
Identificamos uma alta prevalência de sintomas de estresse pós-traumático:
Revivescência: 59,6%
Recordações aflitivas, recorrentes e intrusivas
Hiperestimulação: 63,1%
Dificuldades em conciliar o sono, concentração
Irritabilidade, sobressalto
Evitação: 58,2%
Evitar pensamentos e sentimentos sobre o câncer - evitar locais e/ou atividades;
Diminuição do interesse ou participação nas atividades, distanciamento
Podemos considerar que a alta freqüência dos sintomas de hiperestimulação, em mulheres recém diagnosticadas, principalmente a hipervigilância, pode ser atribuída ao aparecimento do câncer, considerado incontrolável e inesperado por mulheres que estavam no início do tratamento, conforme foi descrito por Mehnert e Koch (2007). A imprevisibilidade e a impossibilidade de controle podem repercutir na sensação de ‘segurança’ do sujeito, com aumento da atenção para os sintomas somáticos, e redução na concentração para as outras atividades, levando à irritabilidade, e repercutindo no funcionamento social. O critério de revivescência dos sintomas considera que os pensamentos intrusivos e os afetos são decorrentes do evento que ocorreu. Porém, no contexto do câncer, os pensamentos intrusivos podem estar orientados para o futuro, relacionados à ameaça que a doença representa para a saúde do indivíduo. O trabalho de Green et al. (1998) evidenciou esse aspecto no relato das pacientes, que avaliaram a informação sobre o seu prognóstico como muito mais ameaçadora do que os tratamentos que elas tinham recebido. Kangas et al. (2002) considera que essas preocupações orientadas para o futuro podem ser consideradas como uma revivescência dos sintomas e que elas têm ótima sensibilidade e especificidade para o diagnóstico de TEPT. Os sintomas de evitação, como evitar lembranças sobre o estressor, pode não ser apropriado para pacientes diagnosticadas com câncer, que necessitam ir às consultas médicas e fazer exames pré-operatórios. A incapacidade de recordar um aspecto importante do trauma (amnésia dissociativa) pode ser apropriada para eventos traumáticos únicos, mas, para pacientes com câncer, apresentar amnésia sobre a experiência que estão vivenciando, dificilmente ocorreria. A sensação de futuro abreviado não possui especificidade em pacientes com câncer, porque muitos deles podem temer o futuro por razões de ordem médica e não psicológicas (Kangas et al., 2002). Portanto, esses sintomas podem trazer dificuldades diagnósticas, e é o mais difícil de ser preenchido, por causa de suas características e do número de sintomas necessários, três de sete sintomas, podendo levar a uma diminuição do número de pacientes diagnosticados com TEPT. Identificamos que 17,9% das mulheres poderiam ser diagnosticadas com TEPT, de acordo com os critérios do DSM-IV e 24,5% apresentavam quase todos os critérios para o TEPT, constituindo casos subsindrômicos.
As respostas de estresse pós-traumático ao câncer foram avaliadas em mulheres, que podem apresentar uma melhora espontânea dessas respostas traumáticas, embora os trabalhos revisados apontem para uma cronificação destes sintomas em uma parcela significativa das mulheres. Tradicionalmente, os estudos de pacientes com doenças físicas utilizam escalas de sintomas que resultam em uma avaliação global da sintomatologia, e sofrimento emocional significativo. Entretanto, a utilidade clínica dessas medidas pode ser de valor limitado para identificar o grande número de pacientes que apresentam sintomas psiquiátricos e cujos estados clínicos requerem intervenções específicas.
Considerações Finais
O diagnóstico do câncer em si mesmo pode ser reconhecido como estressor mais do que as potenciais ameaças que se seguem após o diagnóstico (Kangas, 2002). O evento traumático no TEPT em pacientes com câncer é interno e não pode ser evitado. A ameaça à integridade física não é imediata, e o desfecho está orientado para o futuro. Entretanto, os sintomas de TEPT-Câncer avaliados em pacientes após os tratamentos podem estar relacionados à gravidade da doença, ao tipo ou estágio do câncer, a agressividade e/ou efeitos colaterais dos tratamentos e a possibilidade de recorrência, dificultando a identificação do evento traumático que pode precipitar o TEPT (Gurevich, 2002).
Avaliar as reações ao diagnóstico de câncer da perspectiva do TEPT pode orientar o desenvolvimento de intervenções específicas para essa fase, principalmente em populações onde a escassez de recursos, a desigualdade social e os altos índices de violência, podem contribuir tanto para o aumento do TEPT em geral, como também para o TEPT relacionado às condições médicas. Os resultados desse estudo podem alertar para a importância da investigação do TEPT em pacientes com câncer. Esse conceito é pouco utilizado pelos profissionais de saúde, por desconhecimento desse transtorno, e também por valorizar as comorbidades associadas a esse diagnóstico, como os transtornos de ansiedade, depressão, dissociação e pânico. A interferência na qualidade de vida ocasionada pelo TEPT, somada ao prejuízo provocado pelas comorbidades, causam sofrimento, além do dano potencial associado ao eventual retardo para a realização do adequado diagnóstico e tratamento destes pacientes.
Alguns estudos sugerem que o acesso a recursos de tratamento e suporte poderia minimizar os efeitos do trauma sobre a saúde mental das populações. Os conceitos de vulnerabilidade, resiliência e mecanismos de enfrentamento (coping) vêm ganhando importância para a compreensão da adaptação ao trauma. A investigação de mediadores, que possam interferir ou melhorar os mecanismos de enfrentamento e resiliência em pacientes com câncer, podem melhorar a sensação de controle das pacientes sobre o evento traumático.
*Profa. Dra.Sara Mota Borges Bottino
Coordenadora Médica da Psiquiatria do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo